Toma essa: os bilhões que damos todos os anos à indústria de refrigerantes
Uma portaria federal de 2003 determina que “todas as etapas do processo produtivo acima descritas deverão ser realizadas na Zona Franca de Manaus”. Entre essas etapas, está a secagem do vegetal.
A página do Matte Leão não fala nada sobre Manaus. “Depois de ensacadas, as folhas secas vão para a fábrica localizada no município de Fernandes Pinheiro, no Paraná. Lá, a erva vai para a área da fornalha, onde é feita a torração. As folhas torram por 15 a 17 minutos, numa temperatura que varia entre 180 e 215 graus Celsius. As ervas utilizadas na linha seca – sachês de chá ou a granel – são então ensacadas e enviadas para outra fábrica, em Fazenda Rio Grande, também no Paraná. Outra porção, no entanto, segue para a linha de extração, em Fernandes Pinheiro mesmo.”
Algumas horas depois de apresentarmos nossas perguntas à Abir, foi publicada no site da associação uma nota informando que a Leão Bebidas, fabricante do Matte Leão, havia divulgado em agosto um novo relatório de sustentabilidade. O documento de 24 páginas lista uma série de projetos sobre agricultura e produção sustentável, mas não fala nada sobre Manaus, e um mapa sobre todas as atividades da Leão tampouco coloca qualquer atividade no Amazonas: as fábricas estão no Paraná e no Espírito Santo.
A hora do boom
Em 2012, o estado de São Paulo entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra uma lei e um decreto do governo do Amazonas que davam ainda mais incentivos às empresas que se instalam na Zona Franca. A Afrebras foi aceita como entidade apta a ajudar a embasar a decisão judicial. Nos autos, a associação acusa haver superfaturamento dos concentrados de refrigerantes, com uma diferença de 363,15%. A estimativa da associação é de que São Paulo perca R$ 340 milhões ao ano entre a renúncia fiscal e a obrigação de repassar créditos.
Entre os anexos está uma lista da revista Exame que mostra as empresas líderes de cada segmento em 2013. A Arosuco, da Ambev, apresentava a melhor margem de lucro do Brasil: 82,1%, mais de vinte pontos de vantagem sobre a segunda da lista, a Redecard (58,9%), que trabalha com o mercado financeiro, onde as margens de lucro costumam ser exorbitantes.
O setor químico da Zona Franca, formado basicamente pelas fabricantes de concentrados, explodiu no decorrer da década de 1990, e fica sempre na terceira posição em termos de faturamento, atrás de eletroeletrônicos e duas rodas (motos). O estudo “Os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus”, feito em 2015 pela Fundação Getúlio Vargas para a Abir, mostra que o faturamento desse setor por funcionário é de R$ 9,265 milhões, bem acima dos concorrentes. São 900 empregos gerados.
Segundo levantamento da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), havia 2.660 funcionários no setor químico em 2016, contra 29 mil de eletroeletrônicos, 13 mil de duas rodas e 6.700 de termoplástico. A Recofarma tem 175 funcionários, segundo o levantamento mais recente oferecido pela Suframa. A Arosuco, 142.
A Abir contesta essa comparação com outros setores, afirmando que os concentrados são o único segmento que cria postos de trabalho na área rural. Seriam 14 mil empregos no total.
Pegamos os dados de produção agrícola do IBGE, que não detalham o número de produtores. Maués, no Amazonas, tinha em 2015 a maior área colhida, com 2.700 hectares, mas ficava bem atrás de Taperoá, na Bahia, na quantidade produzida. Com apenas 1.600 hectares, a cidade baiana chegava a 680 toneladas, contra 378 da amazonense. O rendimento médio era de 400 quilos por hectare, contra 122 em Maués. No ano passado, o Amazonas tinha 3.994 hectares colhidos e 689 toneladas, contra 6.100 hectares e 2.600 toneladas da Bahia.
O estudo da FGV feito a pedido da Abir fala em oito mil famílias associadas ao guaraná. Se são oito mil famílias para cerca de quatro mil hectares registrados pelo IBGE, chegamos a menos de meio hectare colhido por família. A estimativa do IBGE é de um total de R$ 14,2 milhões de rendimento em todo o Amazonas no ano de 2015, com 4.100 hectares cultivados. Isso daria uma média de R$ 2.000 ao ano por família. Os produtores são, portanto, sócios minoritários da empreitada amazônica, com um rendimento bem inferior ao do salário mínimo. Perguntamos à Abir se há alguma política de complementação de renda para os agricultores, mas não obtivemos resposta.
As maiores empresas de concentrados respondem por menos de 1% da mão de obra empregada diretamente na Zona Franca, mas colhem 12-13% do faturamento. O setor de químicos é de longe o que mais avança em valores desde a década de 1990. Enquanto o número de trabalhadores se multiplicou por dez entre 1988 e 2013, o faturamento em dólares aumentou duzentas vezes. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a margem bruta operacional do setor explodiu em 1992, chegando a 91,8% sobre o faturamento, justamente no ano em que se editou um decreto aumentando a isenção de impostos para a região. A média das indústrias do polo era de 63% e a de outras indústrias ficava em 33,5%.
Tivemos acesso a alguns planos de instalação e atualização que as empresas precisam apresentar ao governo do Amazonas e à Suframa para fazer jus aos incentivos tributários. Uma delas mostra os projetos da Schincariol, hoje Brasil Kirin, na virada da década. A companhia projetava criar mais cinco postos de trabalho, chegando a 16, sendo sete diretos e nove indiretos. Em troca desses empregos, estimava uma renúncia de ICMS que chegava a R$ 54,8 milhões em três anos. Em 2015, segundo a Suframa, a Brasil Kirin tinha 33 funcionários e um investimento de US$ 7,28 milhões. As outras propostas que vimos são similares: um número pequeno de postos de trabalho diretos e indiretos, uma renúncia fiscal elevada.
A Brasil Kirin não respondeu a nossos pedidos de entrevista.
Analisando os dados da Suframa, vimos que o setor de químicos é sempre o segundo em restituição de ICMS, apesar de nem sempre ser o segundo em pagamento de impostos. No ano passado, por exemplo, foram R$ 140 milhões pagos e R$ 1,167 bilhão recebido. O setor de duas rodas, com mais empregos e maior faturamento, pagou mais, R$ 155 milhões, e ganhou menos créditos, R$ 365 milhões.
O presidente da Abir, Alexandre Kruel Jobim, diz que a indústria de refrigerantes é vítima de “bullying” e que garante anualmente R$ 10,7 bilhões em impostos – ele não explica se o cálculo já exclui a renúncia. “É muito importante esclarecer que não estamos a falar de uma política fiscal. Estamos a falar de uma política de desenvolvimento regional. Para isso foi criada a Zona Franca de Manaus”, disse, durante a audiência pública recém-realizada pela Câmara.
Se é assim, há uma falha nessa política de desenvolvimento. Já vimos que os produtores de matéria-prima têm baixo rendimento. Um estudo feito em 2013 pela Consultoria Legislativa do Senado mostra que os salários na Zona Franca como um todo são baixos. Mais baixos que o da própria Manaus – a criação da Zona Franca previa que fosse uma espécie de ilha de bons salários dentro do Amazonas, e não o contrário.
O Orçamento de 2017 do governo federal calcula em R$ 28 bilhões os gastos tributários totais da Zona Franca, o que representa 10,17% dos gastos tributários da União, atrás apenas do Simples Nacional, com R$ 79 bilhões.
Mauricio Brilhante de Mendonça, professor adjunto no Departamento de Administração da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), estima em R$ 192 bilhões o gasto total com a Zona Franca entre 2004 e 2014. O interessante é acompanhar a evolução desses incentivos: de R$ 3,7 bilhões em 2004 para R$ 24,99 bilhões em 2014, crescimento de seis vezes e meia. No mesmo período, o faturamento aumentou duas vezes e meia, mesma proporção do pagamento de tributos federais.
Durante a audiência pública na Câmara, Alexandre Jobim negou que a região tenha se transformado em uma fábrica de créditos para Coca e Ambev. “Com todo o respeito, não acreditem nessa história de que é apenas para duas empresas. A lei é para todos.” É verdade. Qualquer empresa pode se instalar ou comprar da Zona Franca.
Mas há algumas questões. Primeiro, buscar o insumo em Manaus e levar para o Sul ou o Sudeste, onde está a maior parte das fábricas, tem um custo. Segundo, como há um crédito a ser cobrado sobre o IPI, quem compra mais pede mais. E pode mais. Esses créditos podem beneficiar ligeiramente um pequeno produtor. Mas, no caso do grande produtor, funcionam como um incentivo bilionário. Podem se transformar em subsídios para rebaixar preços e quebrar os concorrentes. Em publicidade para aumentar a participação de mercado. Em recursos para comprar espaços nas prateleiras do supermercado e prejudicar as outras empresas. Essa é uma briga antiga do setor: a acusação de que Coca e Ambev tentam monopolizar os espaços de venda. As duas alegam que qualquer um pode pagar para ter maior exposição e que, de todo modo, ficam em evidência os produtos de melhor qualidade.
“Uma Coca-Cola de 2 litros hoje o consumidor não ia pagar menos de R$ 15. Aí eu lhe pergunto: a R$ 15 o consumidor rejeita ou não rejeita? Consome menos ou consome mais? Consome menos, não há nem dúvida disso”, diz Fernando Bairros da Afrebras. “Se o governo quer diminuir o consumo é só fazer com que o setor de bebidas esteja em uma concorrência leal, uma concorrência igual para todos.”
Um documento da Afrebras registra que em 1960 havia 892 fabricantes de refrigerantes. Em 2015, 235. No ano 2000, as pequenas produziam 2,72 bilhões de litros, contra 1,04 bilhão 15 anos mais tarde. No mesmo período, que coincide com o ápice dos créditos da Zona Franca de Manaus, as grandes saltaram de 5,78 bilhões para 13,86 bilhões, segundo a entidade.
A Receita tem procurado aproveitar qualquer erro para glosar o crédito, ou seja, não reconhecer o crédito e cobrar o imposto que deixou de ser pago. O caso vai parar na Justiça. As pequenas empresas podem ter dificuldades em arrastar um processo por anos. As grandes, não. É uma briga que promete existir por muito tempo.
* Colaborou Rafa Barbosa.
Foto: Deco Proteste
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