A ideia é simples: como na Organização Mundial do Comércio
(OMC) não foi possível estabelecer acordos ultraliberais em função,
principalmente, da resistência de alguns países emergentes, que buscavam um
acordo mais equilibrado, União Europeia e Estados Unidos optaram por negociar
em separado um acordo em serviços com os países que ofereceram menos
resistência.
A aposta é que, feito o acordo, voltem à OMC já com um
tratado feito, de peso, que passe a ser referência mundial sobre o comércio de
serviços e que pelo número de nações participantes abarcaria cerca de 70% de
todos os serviços do mundo. Até o momento, além da União Europeia (com seus 28
países-membros) e dos Estados Unidos, participam das negociações do TISA, o
Trade in Services Agreement: Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Coreia do Sul,
Costa Rica, Hong Kong, Islândia, Israel, Japão, Liechtenstein, México, Nova
Zelândia, Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Suíça e Taipé Chinês.
Ademais, Uruguai e China pediram para ingressar.
Uma motivação extra à negociação do acordo sem dúvida é
também o contexto de crise econômica global, que impulsa os países centrais a
defender “suas” empresas, sempre muito bem organizadas em lobbies
profissionalíssimos e até agora eficazes.
E o que propõe o TISA?
1) Lista negativa: todos os países têm que apresentar uma
lista de serviços que gostariam de excluir do acordo. Na OMC, tentaram isso,
mas a maioria dos países rejeitou a proposta, preferindo trabalhar com listas
positivas, ou seja, quando todos os países informam quais serviços estariam
dentro do acordo. Trabalhar com listas negativas oferece muito mais
riscos, uma vez que, a princípio, tudo está incluído. Sem contar que, como
normalmente ocorre nos textos de acordo, no mínimo 90% dos serviços devem estar
incluídos na lista de ofertas;
2) Status quo: firmado o acordo, preservar-se-á, no mínimo, o
grau de liberalização vigente. Nenhum serviço privatizado, mesmo que não
funcione, poderá ser reestatizado. Ficaria assim impedido o que vem ocorrendo
em vários países, principalmente no abastecimento de água e coleta de lixo, que
por ineficiência da iniciativa privada em oferecer serviços de qualidade com
preços acessíveis, estão voltando às mãos públicas (Berlin, Paris, Buenos
Aires, Bogotá, etc.);
3) Cláusula “trinquete”: define que qualquer desregulação
promovida em um país que seja parte do acordo se torna imediatamente
permanente, não podendo mais ser revertida. Assim, mudanças de governos nada
significarão para serviços em geral; [trinquete: mecanismo que permite a uma
engrenagem girar na direção de um lado, mas impede de fazê-lo no sentido
contrário; como o que acontece com uma espécie de roldana dentada]
4) Cláusula para o futuro: os termos do acordo valem para os
serviços hoje existentes e quaisquer outros que, fruto do desenvolvimento
tecnológico, venham a existir no futuro. Qualquer novo serviço estará
automaticamente subordinado ao acordo, sem necessidade de discussão adicional
alguma;
5) Proibição de normas nacionais e restrição a regulações
locais: nenhum serviço poderá estar submetido a qualquer norma de preferência
nacional, estabelecendo-se a abertura completa à concorrência internacional
para o seu provimento. Qualquer tipo de restrição em um serviço que for parte
do acordo deverá perder a validade. Aspectos como restrições ambientais, de
defesa de um patrimônio histórico, de natureza urbanística, ou de caráter
trabalhista ou outras que impeçam o “desenvolvimento” e a livre iniciativa
seriam motivos de queixas das empresas provedoras de serviços e tenderiam a ser
removidos. O Walmart, as mineradoras e outros agradecem;
6) Liberalização não diferenciada: valerá sempre aos países
que façam parte do TISA o acordo mais liberalizante estabelecido pelos mesmos
com qualquer outro país. No Mercosul, por exemplo, estabelecendo-se uma
política de integração, o mesmo grau de liberalização de serviços acordado
deverá valer automaticamente para os países do TISA, considerando que Uruguai e
Paraguai estão, no momento, negociando o TISA. Em outras regiões, o Panamá, em
acordos prévios, liberalizou largamente os serviços de saúde; a Turquia os de
Educação e assim segue, sempre com um país oferecendo mais abertura em uma área
específica. Imagina-se o que seria a universalização dos termos mais liberalizantes
de cada acordo.
7) Bases jurídicas sólidas e painéis arbitrais independentes:
como o atual sistema internacional de resolução de controvérsias entre empresas
contra o Estado ainda gera debates, o TISA estabelece regras claras para
demandas de investidores contra o Estado – o que facilitaria muito o
favorecimento às empresas. O julgamento em caso de controvérsia se daria em
painéis independentes, sem qualquer subordinação a leis nacionais ou mesmo
tratados internacionais, ou seja, independente de tudo o que possa interferir
no “livre” julgamento. Assim garantem-se menos Estado, mais empresas;
8) Leis não necessárias: o acordo contém uma cláusula que
permitirá que qualquer empresa ou Estado membro do TISA possa arguir que uma
lei nacional ou uma política de Estado prejudica a livre concorrência. Feita a
queixa, a mesma deverá ser julgada pelos painéis “independentes”. Políticas
como as de restrição ao fumo, de defesa ambiental ou de desenvolvimento local
ficam subordinadas ao crivo “legal” desses painéis. Também se estabelece
que caso se adote novas políticas públicas, essas deverão estar abertas à
opinião de Estados-membros e suas empresas, para observações que permitam
“otimizar” custos e favorecer a concorrência, não podendo ser implantadas até
ouvir-se as partes;
9) Divulgação somente cinco anos depois de assinado: por
último, o acordo estabelece que suas cláusulas permanecerão em segredo de
Estado, sem divulgação pública no prazo mínimo de cinco anos após a assinatura
do acordo. Não está claro como se manejará conflitos de poderes com os atuais
parlamentos nacionais dos países membros do TISA.
Enfim, o que verdadeiramente está em jogo neste acordo é
muito mais que comércio, muito mais que serviços. Está em jogo o próprio
conceito de democracia, a liberdade de um povo escolher como deve funcionar o
Estado e suas prioridades em oferecer serviços básicos; de definir o modelo de
desenvolvimento preferível em busca de um futuro melhor e mais sustentável.
Hoje, já se notam claras limitações em se governar, mas para empresas e alguns
governos isso ainda é pouco. Acordos como o TISA socavam a governabilidade em
um grau nunca antes possível, favorecendo ainda mais as corporações. O TISA –
junto com o Tratado Transpacífico (TPP) e o Tratado Transatlântico (TTIP) e outros–
estabelece um novo grau de hegemonia e sua consequente concentração de renda.
Aos poucos, sente-se que a resistência cresce, que forças
políticas começam a se movimentar mais intensamente contra o TISA, mas haverá
tempo para pará-lo?
*Jocelio Drummond é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GRRI, da Coordenação da REBRIP e
secretário da Internacional dos Serviços Públicos para as Américas. A ISP é uma
organização sindical mundial que, entre outras ações, tem liderado a luta
contra o TISA em diversos países. Para mais informações sobre o TISA, ver o
site www.world-psi.org/TISA
Por Jocelio Drummond
Por Jocelio Drummond
0 comentários:
Postar um comentário